- Carolina Ribeiro
O estatuto do inconsciente e o lugar do analista na direção de tratamento
Atravessados por uma retomada de conceitos caros à psicanálise, tanto o seminário 1 como o seminário 11 são marcados por um Lacan indicando que alguns ditos “psicanalistas” não estavam no campo da psicanálise, e sim no campo das “psicologias do ego”. Percebendo então esse desvio em relação ao inconsciente freudiano, e, portanto, ao campo da psicanálise, Lacan faz seu retorno a Freud, retomando alguns conceitos fundamentais da psicanálise, dentre eles o conceito do inconsciente.
Voltando e seguindo um pouco mais o seminário 11, percebemos que Lacan retoma o inconsciente freudiano, porém traz novidades importantes para seu estatuto conceitual, fazendo uma relação entre tal estatuto e o lugar do analista na direção de tratamento. Por isso parto desta questão, formulando uma pergunta para seguirmos nosso raciocínio: Qual é o estatuto conceitual do inconsciente lacaniano e o que isso implica no lugar do analista na direção de tratamento?
Para respondermos a essa pergunta, se fará necessário estudar as especificidades do estatuto do inconsciente bem como o tipo de causalidade que está em jogo quando estamos falando do inconsciente lacaniano.
Freud forjou o conceito de inconsciente na teoria psicanalítica a partir de fenômenos aparentemente corriqueiros: o esquecimento de nomes, os lapsos da língua, os chamados witz (ou ditos espirituosos) e os sonhos. Na claudicação da consciência, viu mais do que simples fenômenos aleatórios ou sem importância: havia algo ali a ser explorado.
No Seminário 11– Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1988), Lacan retoma o conceito de inconsciente sublinhando o caráter de descompasso pelo qual ele se manifesta:
No sonho, no ato falho, no chiste – o que é que chama atenção primeiro? É o modo de tropeço pelo qual eles aparecem. Tropeço, desfalecimento, rachadura. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é ali que vai procurar o inconsciente. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. Aquilo pelo qual o sujeito se sente ultrapassado, pelo que ele acaba achando ao mesmo tempo mais e menos do que esperava. Ora, esse achado, uma vez que ele se apresenta, é um reachado, e mais ainda, sempre está prestes a escapar de novo, instaurando a dimensão da perda. (LACAN, 1964/1988, p. 32)
Assim, o inconsciente se produz enquanto perda, instaurando essa própria dimensão. Como indica Lacan, Freud não o formula a partir da consciência (ou de uma consistência), mas de uma hiância. Algo se produz enquanto presença fugaz impossível de ser apreendido, pois mal faz a sua aparição e logo escapa. O achado parece estar vinculado ao tema do encontro ao qual Lacan cita Picasso: “Eu não procuro, acho” (LACAN, 1964/1988, p. 14).
A dimensão do encontro traz o novo, a surpresa, o inesperado, e implica no reconhecimento de uma verdade que (não) estava lá antes. Lacan difere “procura” de “encontro”: “procurar” seria mais da ordem de uma pesquisa científica, já “encontrar” é de ordem ética.
Uma das características atribuídas ao inconsciente freudiano por Lacan é o caráter descontínuo por meio do qual ele se apresenta. Dessa forma, se o inconsciente pode ser apreendido como presença, é apenas enquanto presença de uma falta.
Dessa forma, o inconsciente não é o oposto ou o negativo da consciência: não significa inconsciente como algo não consciente. Isto é, não designa apenas a qualidade daquilo que não é consciente, pois de acordo com sua acepção do termo – e também do conceito – a referência maior seria a consciência, mas ele vai na contramão dessa concepção. Tampouco o conceito de inconsciente (unbewusste) seria um não conceito, mas sim o conceito da falta, da descontinuidade, da ruptura.
Lacan nos conduzirá a pensar qual é a causa envolvida no estatuto do inconsciente:
A função da causa oferece a todo saque conceitual, uma hiância [...] e não é para nós, racionalizada. Ao contrário, cada vez que falamos de causa, há sempre algo de anticonceitual, de indefinido. As fases da lua são a causa das marés – quanto a isso, é claro, sabemos nesse momento que a palavra causa está bem empregada. Em suma, só existe causa, para o que manca. (LACAN, 1964/1988, p. 29)
O inconsciente é abordado por meio da função da causa, onde se situa nesse ponto em que, entre a causa e o que ela afeta, há sempre claudicação, vacilação, hesitação. O inconsciente não determina a neurose, ele nos mostra a abertura por onde a neurose se conforma a um real – real que bem pode, ele sim, não ser determinado. E o que se acha nesse buraco, nessa fenda, característica da causa? Algo que é da ordem do não realizado.
Assim, segundo Lacan (1964/1988, p. 34), o inconsciente “vacila num corte do sujeito [...] donde ressurge um achado, em que o sujeito se saca em algum ponto inesperado”.
À vista disso, o inconsciente não é nem ser nem não-ser, mas é algo de não realizado, isto é, sua reflexão sobre qual substância compõe o inconsciente recai em não ter substância, não se prestando a qualquer forma de ontologização. Então, qual é o estatuto conceitual do inconsciente, já que ele não pode ser definido enquanto ser (positividade e consistência) e tampouco como não-ser (ausência, puro nada)?
Nesse contexto, o inconsciente é um conceito eminentemente ético, no qual ele depende de um processo de produção, de um encontro no contexto da linguagem. Isto é, a problemática do inconsciente é indissociável da problemática da ética. Pensar o sujeito, portanto, não é pensar o sujeito do conhecimento, mas sim pensar sob esse novo ângulo, que é a definição pelo desejo, pela falta-a-ser. Acompanhemos seu encaminhamento: “O estatuto do inconsciente, que eu lhes indico tão frágil no plano ôntico, é ético. Freud, em sua sede de verdade, diz – O que quer que seja, é preciso chegar lá – porque em alguma parte, esse inconsciente se mostra” (LACAN, 1964/1988, p. 40).
Dessa maneira, o inconsciente é ético, mas uma ética que tem uma relação íntima com a verdade, a verdade do dizer, do dizer do desejo, ainda que seja uma verdade semi-dita. Há uma dimensão de produção aqui, no sentido então de que algo se produz em um contexto específico, na presença do analista, por meio da transferência.
Para Lacan (1964/1988, p. 38), o que é ôntico na função do inconsciente, “[...] é a fenda por onde esse algo, cuja aventura em nosso campo parece tão curta, é por um instante trazida à luz – por um instante, pois o segundo tempo, que é de fechamento, dá a essa apreensão um caráter evanescente”.
O aparecimento evanescente, então, se faz entre dois pontos, o inicial e o terminal, desse tempo lógico – entre um instante de ver em que algo é sempre elidido, se não perdido, da intuição mesma. Esse momento elusivo, segundo Lacan, se trata sempre de uma recuperação lograda. Portanto, onticamente falando, o inconsciente é o evasivo, porém, cercado de uma estrutura temporal, grande novidade trazida por Lacan.
Vemos, assim, que o estatuto ético do inconsciente carrega consequências importantes para o lugar do analista na direção de tratamento, onde este garantirá que a fenda não seja suturada e, portanto, possa operar, isto é, que o inconsciente possa se realizar – como corte.
Lacan critica os psicólogos ortopédicos, que se dedicam à teoria psicanalítica suturando essa fenda, nomeando-os “ortopedeutas” que psicologizam a teoria psicanalítica. Mesmo orientados pela associação livre do paciente, interpretando as formações do inconsciente, Lacan argumenta que eles não estão no campo da psicanálise, afinal não incluem a noção de causalidade e temporalidade do inconsciente, aproximando-se de uma abordagem desenvolvimentista da psicologia.
Desse modo, Lacan distingue os psicanalistas desses “ortopedeutas”, justificando que estes dirigem a finalidade do tratamento à identificação do analista, tomando o ser do analista, com as suas paixões e com seu suposto ego bem adaptado como modelo de identificação ideal. Acompanhando ainda a sua crítica, ele argumenta que os efeitos dessa direção de tratamento seria cimentar o que foi construído pela neurose enquanto cicatriz do furo, perdendo de vista a dimensão do real na interpretação e o estatuto conceitual do inconsciente lacaniano.
Assim percebe-se a íntima relação entre o estatuto conceitual do inconsciente (ético) e o lugar do analista (onde ele cuida dessa dimensão do real na interpretação, garantindo que a fenda não se suture) na direção de tratamento e, dependendo de como entendemos tal estatuto, a direção de tratamento e o lugar do analista mudam radicalmente, bem como os efeitos clínicos recolhidos.
Carolina Ribeiro
* Esta produção textual é baseada em um texto que foi apresentado na Jornada de Encerramento do FCL-SP 2019, como produto do cartel A Direção de Tratamento.